SÃO PAULO – O menino de quatro anos teve dificuldade para manter o equilíbrio enquanto corria pela sala. Os olhos de sua mãe seguiam atentamente cada movimento seu. Então uma convulsão o derrubou no chão. O baque de seu pequeno corpo ecoou por toda a casa.
Naquela manhã de julho no Guarujá, cidade costeira do estado brasileiro de São Paulo, Murillo rapidamente recuperou o juízo enquanto sua mãe, Janaína Silva, o segurava nos braços.
“Cinco minutos de agonia agora se tornaram apenas segundos”, diz Silva, lembrando que as convulsões do filho teriam durado muito mais há apenas três meses. Murillo foi diagnosticado ainda bebê com síndrome de Lennox-Gastaut, uma forma de epilepsia com vários tipos de convulsões que causam enrijecimento e queda da cabeça e dos membros.
Silva acredita que suas convulsões mais curtas – e menos intensas – são resultado de uma dose constante de canabidiol líquido (CBD), que ela pode obter gratuitamente através do sistema de saúde governamental. Este é um passo que o governo federal não conseguiu tomar, uma vez que a legislação para regular a cannabis medicinal e os seus derivados a nível nacional está paralisada no Congresso há anos.
Nas farmácias, um frasco de 30 mililitros de CBD que o pediatra de Murillo receitou para sua doença custa até 900 reais (US$ 180) – mais da metade do salário mensal de Silva como auxiliar de escritório. Ela não gasta nada com a medicação CBD de Murillo desde junho. Ela pinga o óleo na boca do menino duas vezes ao dia e cada frasco dura cerca de 45 dias.
O CBD é um produto químico encontrado na maconha. Alguns estudos demonstraram que, quando combinado com outros medicamentos, ajuda a reduzir as convulsões em pessoas com formas graves de epilepsia. Ainda não está claro por que reduz as convulsões. Os efeitos colaterais podem incluir diarréia, vômito, fadiga e dificuldade para dormir. O CBD não é o composto de THC que causa o efeito da maconha e foi demonstrado que ajuda pacientes com câncer e outras pessoas doentes a melhorar o apetite.
São Paulo, o estado mais populoso do Brasil, com mais de 44 milhões de residentes, foi o primeiro estado a aprovar uma lei que disponibiliza gratuitamente o CBD.
A lei foi uma vitória para as mães brasileiras que lutaram durante uma década para dar aos seus filhos doentes acesso a cuidados médicos. Eles lutaram contra a desobediência civil, ações judiciais, manifestações e pressão política.
Uma das mães que lideram a campanha é Maria Aparecida Carvalho, 56 anos, ex-bancária. Sua filha Clárian foi diagnosticada com síndrome de Dravet, uma forma grave de epilepsia que pode levar à insuficiência cardíaca e pulmonar súbita e à morte, aos dez anos de idade. Seus medicamentos causaram efeitos colaterais graves – a certa altura ela quase precisou de diálise sanguínea por causa do envenenamento – e suas convulsões podiam durar até uma hora. Carvalho e o marido se revezavam para dormir, temendo perder o filho durante a noite.
Então ouviram falar de Charlotte Figi, uma americana que sofria da mesma doença e se tornou a garota-propaganda do CBD médico em todo o mundo. Quando Carvalho leu sobre ela em 2013, contou imediatamente ao marido.
“A primeira coisa que eu disse a ele foi: ‘Vamos pegar isso dos traficantes’”, disse Carvalho.
Em vez disso, ela conseguiu obter CBD meses depois, quando o neurologista de sua filha o contrabandeou em sua bagagem ao retornar de uma viagem ao exterior. Mais tarde, com a ajuda de um advogado, ela recebeu permissão especial de um tribunal para começar a cultivar maconha em seu quintal em São Paulo e, desde então, produziu o extrato químico para sua filha e outros 200 pacientes.
A legislação existente no Brasil permite o uso da cannabis e seus derivados para fins científicos e médicos, afirma Emílio Figueiredo, advogado e membro do Conselho Nacional de Política sobre Drogas. No entanto, o cultivo de marijuana ainda é ilegal, forçando a indústria a importar matérias-primas como o óleo de cannabis, resultando num aumento dramático dos preços.
Quando Caio França, um deputado estadual de centro-esquerda, conheceu Neide Martins, uma mãe que lutava para obter CBD para tratar a forma rara de epilepsia do seu filho, ele percebeu que as famílias precisavam de ajuda, especialmente aquelas que estavam em dificuldades e não tinham dinheiro para comprar medicamentos.
Em 2019, França foi o autor do primeiro projeto de lei do país que permitiria às famílias solicitar medicamentos através do sistema público de saúde. Durante três anos, ele tentou convencer os seus adversários maioritariamente conservadores, um por um, utilizando testemunhos de famílias que queriam que o CBD tratasse os seus filhos.
“O ambiente político estava mal informado e preconceituoso contra a cannabis. Foi surpreendente o pouco que meus colegas deputados sabiam sobre isso”, disse França.
O projeto foi aprovado no final de 2022 com quase dois terços da aprovação do parlamento estadual. Em janeiro de 2023, uma figura incomum o assinou: o governador Tarcísio de Freitas, ex-membro do gabinete do ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, que é frequentemente visto como um possível novo porta-estandarte da direita política.
Ele limitou a conta a pacientes com três doenças raras, incluindo as síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut, citando pesquisas que mostram que estes são os únicos para os quais o uso de CBD demonstrou ser eficaz.
Na cerimônia de assinatura, de Freitas disse que tem um sobrinho com Dravet que usa CBD medicinal. Anteriormente, disse ele, o menino usava capacete em público para o caso de ter uma convulsão repentina.
“Cada convulsão tira um pedaço de vida. E é muito triste ver isso”, disse o governador, segurando o púlpito com as duas mãos. “E então, quando você recebe aquela conta, você fica tipo, ‘Oh meu Deus… finalmente.’ Isso tinha que ser feito.”
O uso recreativo da maconha ainda é proibido no Brasil, mas após anos de deliberações, o Supremo Tribunal Federal a descriminalizou em junho para uso pessoal até uma quantidade máxima permitida. Em resposta, o parlamento conservador do Brasil pressionou por leis mais rigorosas sobre drogas.
Mesmo que o Congresso endureça as leis sobre drogas recreativas, isso não deverá afetar o acesso dos pacientes à cannabis e aos produtos de cannabis, disse o advogado Figueiredo. Uma pesquisa de 2023 do Datafolha concluiu que as opiniões sobre a cannabis medicinal estão transcendendo a profunda polarização política do país.
O consumo de cannabis medicinal no Brasil está aumentando. Em 2023, mais de 430 mil brasileiros receberam tratamento com derivados de cannabis, quase 130% a mais que no ano anterior, segundo pesquisa do serviço de notícias de negócios Kaya Mind.
Sidarta Ribeiro, importante neurocientista brasileiro e fundador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, disse que as mães de crianças doentes estão no centro da luta. Recentemente, ele publicou um livro sobre o assunto chamado The Flowers of Good: The Science and History of Marijuana Liberation.
“Todos estes factores ajudaram a virar a maré na última década, mas o jogo está longe de estar ganho”, disse Ribeiro.
Silva, mãe de Murillo, vem de família conservadora e disse que tinha preconceito contra a maconha, mas mudou de ideia ao ver os benefícios que o CBD trouxe ao filho.
“É um medicamento que pode dar a ele uma melhor qualidade de vida”, disse ela.
___
Nesta história, o nome do advogado é corrigido de Rodrigues para Figueiredo.
___
Acompanhe a cobertura da AP sobre a América Latina e o Caribe em https://apnews.com/hub/latin-america